A não incidência do ICMS no deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular – Uma análise sob a ótica do mecanismo da “repercussão geral”

Contribuintes de todas as Unidades da Federação questionaram, durante longos anos, na Justiça de 1ª instância, nos Tribunais de Justiça dos Estados, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, dispositivos específicos do Decreto-Lei nº 406/1968, que estabelece normas gerais aplicáveis ao ICMS, bem como o inciso I do artigo 12 da Lei Complementar nº 87/1996, que atribui o momento da saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte, ainda que para outro do mesmo proprietário, como fato gerador do ICMS.

“Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:

I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular;

…”

O inconformismo do contribuinte, absolutamente válido, concentrava-se na incidência do ICMS no deslocamento de mercadorias de um estabelecimento para outro do mesmo titular. Sempre foi complexo entender por qual razão a Lei Complementar estabeleceu essa possiblidade de incidência se não há circulação de mercadorias na acepção mercadológica (transferência de propriedade da mercadoria). O que sempre foi questionado, então, era o conceito de “circulação de mercadorias“, nos exatos termos do inciso II do artigo 155 da Constituição Federal.

Em 23 de agosto de 1996, após incansáveis recursos terem sido apreciados no Superior Tribunal de Justiça originados de diversos Tribunais de Justiça dos Estados e, considerando a existência de uma jurisprudência firme na Corte sobre o tema, ou seja, a matéria suscitada já era conhecida dos Ministros e pacificada em diversas Turmas no Tribunal, decidiram editar uma Súmula sobre o tema, senão vejamos:

Súmula nº 166 – Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.” (negrito nosso)

Os Recursos Especiais que serviram de base para que a questão fosse sumulada no Superior Tribunal de Justiça foram: REsp 9.933-SP (2ª Turma, 07.10.1992 – DJ 26.10.1992); REsp 32.203-RJ (1ª Turma, 06.03.1995 – DJ 27.03.1995); REsp 36.060-MS (1ª Turma, 10.08.1994 – DJ 05.09.1994); REsp 37.842-SP (2ª Turma, 24.11.1993 – DJ 13.12.1993).

Se analisarmos apenas as datas decisórias dos Recursos Especiais que originaram a Súmula 166 acima transcrita, perceberemos que a matéria, sem contar o tempo de tramitação na primeira e segunda instância, levou quase 30 anos até ganhar uma roupagem especial, agora em agosto de 2020, no Supremo Tribunal Federal. E qual seria essa roupagem especial que o tema conseguiu ganhar?

Para que possamos compreender a matéria a ser abordada, vale fazermos um adendo, em tempo, para entendermos alguns mecanismos utilizados nos Tribunais. Em linhas gerais, esses mecanismos objetivam a uniformização de temas suscitados pelos jurisdicionados (cidadãos/contribuintes), a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.  A compreensão desses mecanismos facilita a leitura e absorção do conteúdo que estamos tratando no texto. Vejamos:

Súmulas – são enunciados originados de decisões reiteradas proferidas por Desembargadores ou Ministros de um determinado Tribunal Superior, que tem por objetivo uniformizar e concentrar o entendimento de questões decididas no âmbito da Corte. Embora as instâncias inferiores não estejam vinculadas a esse tipo de Súmula, pois não estamos tratando das Súmulas Vinculantes, é praxe que orientem suas decisões por elas, evitando assim, caso objeto de recursos, que sejam reformadas. É o que ocorre, por exemplo, com a Súmula 166 do STJ acima transcrita.

Súmulas Vinculantes – Diferentemente da Súmula, que pode ter origem em Tribunais inferiores, a Súmula Vinculante é originária do Supremo Tribunal Federal, instância máxima do Poder Judiciário Brasileiro. O artigo 103-A da Constituição Federal, acrescido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, inseriu no direito brasileiro a chamada Súmula Vinculante. Assim, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos membros da Corte, depois de reiteradas decisões sobre matéria constitucional, poder-se-á aprovar esse mecanismo.

Publicado, terá efeito vinculante em relação a todos os demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Isso significa dizer que um tema tributário decidido no Supremo Tribunal Federal sob a ótica da Súmula Vinculante obrigará que todo o Poder Judiciário Brasileiro e toda Administração Pública, em qualquer esfera da federação (nesse contexto estamos falando, por exemplo, da Receita Federal do Brasil, das Secretárias de Fazenda dos Estados, das Secretárias de Educação dos Municípios, do Ministério da Saúde, do INSS, da Procuradoria da Fazenda Nacional, etc. etc. …) cumpram as determinações da Súmula Vinculante. O Supremo Tribunal Federal poderá cassar ou anular qualquer ato, administrativo ou judicial, que contrariar o disposto na súmula.

Incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR – Inserido no ordenamento processual pelo novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 13.105/2015, está previsto no artigo 943. E quando é cabível? Quando, simultaneamente, preencher dois requisitos: 1 – houver efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; 2 – houver risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. O procedimento em questão pode ser usado em qualquer Tribunal.

Quando ocorre a instauração de um incidente dessa natureza, o Tribunal suspende os processos em andamento (que tratam da mesma matéria) até que se fixe uma tese para aplicação uniforme. A partir de então, a tese passa a ser obrigatória para todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região e, também, aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do Tribunal. A título exemplificativo, uma tese fixada sob o rito do Incidente de resolução de demandas repetitivas no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, obrigará a Justiça Federal de 1ª instância, bem como seus respectivos Juizados Especiais Federais localizados no Estado de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Unidades Federativas que compõem a 3º Região na divisão jurisdicional de atuação da Justiça Federal) sob pena de cassação ou anulação, conforme o caso.

Repercussão Geral – Inserida no contexto normativo pela Emenda Constitucional nº 45/2004, regulamentada pelos artigos 1.035 e seguintes do Código de Processo Civil e, também, pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, esse mecanismo é exclusivo do Recurso Extraordinário (modalidade recursal apresentada perante o Supremo Tribunal Federal após esgotados todos os recursos nas instâncias inferiores). Além dos requisitos estabelecidos no inciso II do artigo 102 da Constituição Federal para que a Corte pudesse fazer a análise do Recurso (a – contrariar dispositivo desta Constituição; b – declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c – julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d – julgar válida lei local contestada em face de lei federal), após o advento da EC nº 45/2004, passou-se a exigir a necessidade de demonstração da repercussão geral nas questões constitucionais levadas à Suprema Corte.

Mas o que a Corte irá considerar para efeitos de Repercussão Geral? Será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.

E quais o efeitos do reconhecimento da repercussão geral? Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.

Notem que esse mecanismo, assim como os demais, tem por objetivo a garantia de maior efetividade na prestação jurisdicional. O compartilhamento e sistematização de informações, além de representar maior segurança jurídica, uniformiza a aplicabilidade das decisões.

Após conhecermos um pouco dos mecanismos utilizados nos Tribunais e retornando ao tema principal que, por sua vez, chegou ao Supremo Tribunal Federal através do Agravo em Recurso Extraordinário nº 1255885 em 08/02/2020, cabe-nos responder qual seria, então, essa roupagem especial que o tema ganhou na Corte.

Em 15/08/2020 o plenário do STF reconheceu o tema como sendo de repercussão geral. Noutras palavras, mesmo chegando ao STF através de um Recurso Extraordinário interposto por partes específicas visando garantir seus direitos, como a questão julgada transcendia os interesses subjetivos do processo, podendo abarcar inúmeras situações idênticas em todo território nacional, reconheceu-se a repercussão geral, que tem um alcance extremamente grande, pois sobresta, em todo país, em todas as instâncias do Judiciário, as causas que versem sobre o mesmo tema até que se fixe uma tese de aplicabilidade.

Nesse sentido e levando em consideração inúmeras análises do conceito de circulação de mercadorias para fins de incidência do ICMS, foi fixada a seguinte tese de repercussão geral:

“Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”.

Houve uma confirmação de que o ICMS incidirá apenas nas hipóteses em que a circulação da mercadoria resultar em ato mercantil ou transferência de titularidade do bem (transmissão da propriedade do bem).

Os Ministros rechaçaram a tese de que o simples deslocamento de mercadoria de um estabelecimento para outro do mesmo titular possa configurar fato gerador do tributo, pois não haveria a transferência de propriedade do bem.

Apegados ao sentido literal da Lei, os Estados, que se fazem representar pelos Governadores nessas ações/recursos, defendiam, entre outros argumentos, a presunção de constitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar nº 87/2006, normalmente realçados nas Leis e Decretos que cuidam do tema internamente nas Unidades Federativas. Na prática, o que defendiam é o fato de que se a saída de mercadoria, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular, configura fato gerador do ICMS conforme hipótese prevista na Lei Complementar e, reflexamente, se essa Lei foi aprovada, inclusive com quórum especial, no Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, então haveria uma presunção de que ela não está contrariando a Constituição.

Mas essa afirmação está muito longe de ser verdadeira, tanto que a própria Constituição criou meios extremamente eficientes para combater eventuais abusos, intencionais ou não, do Poder Legislativo e Executivo. Normas, no todo ou em parte, que contrariem a Constituição, passam pelo que chamamos de Controle de Constitucionalidade das Normas, exercido pelos nossos Tribunais. Não estando em perfeita harmonia com a Constituição devem ser expurgadas ou inutilizadas via resposta judicial. Tudo isso acontece porque a Constituição tem uma posição proeminente em relação a todo ordenamento jurídico infraconstitucional. Essa posição de superioridade tem o nome de “Princípio da Supremacia da constituição”.

Apenas para explicar nosso tema, mas não entrando nessa questão do Controle de Constitucionalidade das Normas, vale destacar que ao analisar o caso concreto via Recurso Extraordinário, o Supremo Tribunal Federal fez um “controle difuso” de constitucionalidade do ato questionado, mas com efeitos além das partes específicas, em razão do reconhecimento da repercussão geral.

A propósito, vejamos o que decidiu o STF por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 540.829/SP, originado do Estado de São Paulo, em questão semelhante:

“…

… não incide o ICMS na operação de arrendamento mercantil internacional, salvo na hipótese de antecipação da opção de compra, quando configurada a transferência da titularidade do bem”.

Pelo que podem perceber, é fundamental que exista circulação da mercadoria, entendida como a transferência da titularidade do bem e não seu mero deslocamento de um para outro estabelecimento do mesmo titular.

Outro aspecto a considerar é a origem e o destino da mercadoria. É irrelevante que sejam em Unidades Federativas distintas. Isso implica dizer que um contribuinte pode deslocar mercadoria do Estado de São Paulo para outro estabelecimento de sua propriedade no Estado de Tocantins sem a incidência do ICMS nessa simples transferência. Foi exatamente esse o entendimento adotado no Agravo Interno no Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.123.549 do Estado do Paraná (ARE nº 1.123.549/PR-AgR – 1ª Turma – Relator: Ministro Luiz Fux – Publicação:  DJe de 20/09/2019 – STF). Ainda, no mesmo sentido a decisão proferida no Agravo Regimental em Recuso Extraordinário com Agravo nº 1.190.808 do Estado do Rio Grande do Sul (RE nº 1.190.808/RS-AgR – 2ª Turma – Relator: Ministro Gilmar Mendes – Publicação: DJe de 06/08/2019 – STF).

Por fim, é de se esperar uma tendência dos órgãos fazendários estaduais no sentido de não autuação de contribuintes que façam esse tipo de operação entre seus estabelecimentos. A tese fixada no Supremo Tribunal Federal com repercussão geral reconhecida certamente desestimulará o Fisco nessa empreitada. Sempre importante frisar que eventuais manobras tendenciosas a burlar a legislação ou os procedimentos fiscais que não se enquadrem numa operação de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular poderão e deverão ser alvo de Fiscalização.

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